Há textos que revelam de maneira tão bem sucedida a trama que liga política e economia que merecem ser lidos. Principalmente pela contribuição que dão para que se desfaça certa interpretação de que a economia é o campo da técnica ou uma área do conhecimento em que vigoraria um pensamento especializado refratário a qualquer consideração de natureza política.
Dissemos “certa interpretação” porque sua funcionalidade é
óbvia no sentido de fazer prevalecer certos interesses em detrimento de outros
no processo de escolhas que se façam no âmbito de instâncias decisórias de
governo. Acostumamo-nos com a ideia de que a economia é assunto para
especialistas como o é a engenharia e a medicina, do qual o cidadão comum
deveria se ausentar.
Nada disso. Observadas certas relações fundamentais, como
aquelas que associam consumo e investimento – ambos dispêndios de recursos
limitados por parte de agentes
econômicos distintos – as decisões em economia obedecem a interesses bem
identificados na sociedade, que logram impor ao restante dela medidas e
encaminhamentos ajustados ao papel que ocupam no aparato social de produção.
O comentário se faz necessário como preâmbulo ao artigo do
professor Delfim Neto publicado no jornal Valor Econômico de 22/05/2012 e
reproduzido a seguir. Nele o economista revela com maestria como a condução que
vem sendo dado à economia do País exprime, com erros e acertos, as orientações
abraçadas pela sociedade na Constituição de 1988.
Vindo de alguém que passou à história como o czar da
economia no período do regime militar, o artigo é exemplar pela demonstração que
faz a economista de oposição, tidos por democratas, sobre a frequente recusa de reconhecerem,
nas teses que abraçam e nas críticas que sustentam, os anseios da cidadania
consignados no mais relevante pacto democrático que pode celebrar uma nação, o
da sua carta constitucional.
O Necessário Equilíbrio
Por Antonio Delfim Neto
Neste momento de incerteza em que parece que o país não tem rumo,
que parece viver de pequenos expedientes e no qual se exige um "coerente
programa nacional em que o Brasil explicite com clareza o que quer de si
mesmo", é bom lembrar que ele existe. A Constituição tem, ínsita, uma
linha de desenvolvimento político, social e econômico que, com as dificuldades
naturais, vem sendo seguida. Afinal, que tipo de sociedade os brasileiros
escolheram para viver através dos seus constituintes? Não é coisa fácil de definir
porque a Constituição é extremamente analítica, mas podemos definir o seu
"espírito original" em três grandes vetores:
1) uma sociedade republicana em que todo cidadão,
independente de sua origem, cor, credo, gênero, educação ou patrimônio,
obedecerá à mesma lei, à qual se submeterá, inclusive, o Estado; 2) uma
sociedade democrática, controlada pelo sufrágio universal com voto secreto,
amplo e irrestrito no qual, em princípio, quem vota pode também ser votado; 3)
um Estado forte, mas constitucionalmente controlado, que garanta o
funcionamento de uma sociedade aberta, onde os indivíduos têm plena liberdade
para iniciativa lícita e podem apropriar-se dos seus benefícios; com poder para
regular a organização econômica que sustenta o uso dos mercados na alocação de
bens e serviços; e com poder para ir ampliando a construção de uma sociedade
onde cada vez mais adquire significado concreto a igualdade de oportunidades. É
preciso dizer que diante desse programa civilizatório não há a menor dicotomia
entre Estado e mercado.
Para entender porque os economistas podem ser
úteis, não no estabelecimento desse objetivo, mas na facilitação da sua
realização é preciso reconhecer que a condição preliminar para atingi-los é o
aumento da produtividade do trabalho, que encolhe o tempo necessário do homem
para construir sua sobrevivência física e expande o tempo disponível para que
ele conquiste a sua humanidade. O desenvolvimento é apenas o instrumento que,
eventualmente, tornará possível ao homem realizar-se plenamente.
O problema é que, por maior que sejam nossos
desejos e por melhor que sejam as "instruções" da Constituição para a
construção do nosso processo civilizatório, há realidades físicas que obstruem
a sua marcha e decisões políticas que podem acelerá-la ou retardá-la. Para
entender isso observe-se o gráfico abaixo, já publicado nesta coluna uma meia dúzia
de vezes, ao longo dos últimos 12 anos.
Numa simplificação radical ele revela a essência do
processo de desenvolvimento numa economia fechada. Da população total (N)
extraímos a população economicamente ativa (com seu nível de educação e saúde)
e, dela, a Força de Trabalho (L), os que podem e querem trabalhar. Esses,
usando o Estoque de Capital (K), que é trabalho do passado congelado na forma
de infraestrutura, máquinas etc. produzem o PIB. É fato empírico bem comprovado
que a "produtividade" da combinação do capital (K) com o trabalho (L)
depende, dentro de certos limites da intensidade da relação entre eles (K/L),
ou seja, da quantidade de capital (K) de que dispõe cada unidade da mão de obra
(L).
Trata-se, obviamente, de uma metáfora não
mensurável que permite entender que o tamanho do PIB depende do estoque de
capital (K), da disponibilidade do trabalho (L) e da sua
"produtividade" (K/L). A velocidade do processo é determinada pelo
ritmo de crescimento do capital com relação ao do trabalho. Há, portanto, uma
clara relação entre o ritmo possível do consumo e a velocidade desejada de
crescimento.
Até aqui o processo é puramente físico e a economia
tem muita coisa útil para dizer e ensinar sobre ele. Uma vez produzido,
entretanto, a distribuição do PIB entre o consumo que volta para a população
(N) e o investimento que retorna ao estoque de capital (K) para repor o capital
consumido na produção (depreciação) e aumentá-lo, é um processo político. Nas
democracias ele é resolvido nas urnas. Nos regimes autoritários pelo arbítrio,
fora do alcance da economia e dos economistas. O que esses podem fazer é
apontar os inevitáveis resultados práticos das escolhas políticas e o nível de
sua coerência no longo prazo com os objetivos estabelecidos pela sociedade.
Não é preciso ser um físico quântico para
compreender que sem um equilíbrio entre o consumo e o investimento, o sistema
não tem energia para se manter funcionando adequadamente. Quando há ênfase
exagerada no consumo (como no Brasil) ou no investimento (como na China) o
sistema perde funcionalidade no longo prazo. Chega a hora de mudar. O Brasil
precisa dar ênfase ao investimento e às exportações sem recuar na inserção social.
A China precisa reduzir os investimentos e a exportação para dar ênfase ao
consumo.
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