quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Agora somos todos moradores de rua




A designação dos fenômenos sociais muda na medida em que mudam a visão que temos deles. Um caso digno de nota é o modo como temos nos referido nos últimos 30 ou 40 anos ao que agora chamamos de população em situação de rua.
A referência ao termo "situação” busca associar ao indivíduo que vive nas ruas a noção de que o modo de vida é fruto de fatalidade motivada por alguma insuficiência de natureza pessoal: a falta de vontade de trabalhar, a prática de vícios, a existência de perturbações mentais ou coisas que nos acostumamos por tanto tempo a atribuir àqueles que não compartilham do nosso modo convencional de viver.
Dessa época data o hábito de disciplinar as crianças fazendo-se menção a um possível seqüestro pelo “homem do saco”, localizando no objeto de que faz uso o despossuído, para guardar os poucos bens que carrega consigo, o instrumento de agressões à integridade das pessoas com quem a rigor deveria conviver.
Tempo em que os adultos chamavam aqueles que perambulavam pelas ruas de “mendigos”, com o que se lhes buscava atribuir a condição de quem vive de esmolas supostamente por falha de caráter ou limitação física para o trabalho, numa referência a uma concepção culturalmente estabelecida de produzir socialmente que envolvia o ir e vir da fábrica ou do escritório e principalmente a submissão a um regramento que lhes era de todo próprio.
Mas o que seria hoje ser morador em situação de rua  quando multidões acorrem às praças e logradouros públicos para ali habitar por prazo indeterminado em protesto contra as condições de injustiças limites da nossa sociedade organizada segundo a lógica implacável do lucro e da competência pessoal para gerar o que chamam de agregação de valor?
Os movimentos ocupem Nova Iorque, Roma, Londres, com suas tendas ao ar livre e sacos de dormir espalhados pelas calçadas podem ser considerados uma adesão ao modo de existir de amplos contingentes populacionais que nas maiores cidades do mundo optaram por viver com a liberdade dos pombos muito antes que qualquer movimento contestatório reproduzisse seu modo de colocarem-se diante da sociedade constituída para reagir ao empobrecimento progressivo.
O desespero das autoridades por demover os manifestantes dessa decisão apenas confirma que tocaram numa ferida do sistema, que agora se espraia com a percepção daquilo que a sociedade não queria enxergar, porque se assim o fizesse seu próprio modo de vida se revelaria o que é: pura opção.
Opção por submeter-se aos corruptos eleitos por processos fraudados, opção por entregar a saúde e o tempo de viver com as pessoas queridas aos dirigentes de empresas que a cada final de ano transformam os ganhos obtidos coma supressão do necessário para a felicidade de muitos em carrões importados, que nem emprego criam em seu próprio país.
Opção por submeter-se à ideologia das telenovelas, dos comentaristas de telejornais que falam com a autoridade daqueles que possuem poder sobre nossos destinos e nossas escolhas. Opção por submeter-se à violência do policial, à arrogância do fiscal e ao tratamento de boiada de um sistema de transportes concebido para massa, para o povão como disse outro dia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Com as novas formas de protestos somos todos agora moradores em situação de rua. E isso nunca será dito no telejornal das 8. Não enquanto nós mesmos não o percebermos.   
     

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