Num dia desses, meu filho, homem feito de quase 30 anos de idade, fez-me uma pergunta que pareceu não muito diversa em sua simplicidade daquelas que costumava fazer quando criança e que envolvia dúvidas triviais do tipo de onde vem tal coisa, como é feita outra e assim por diante.
A pergunta quase infantil encerrava, no entanto, um daqueles questionamentos definitivos que fazemos a certa altura da vida e que sem que nos apercebemos buscam levantar o véu sob o qual insistem em permanecer ocultos aos nossos olhos por toda a existência os mecanismos de funcionamento da sociedade em que vivemos.
Para que servem afinal os filósofos, perguntou meu filho, gente que passa a vida pensando e que aparentemente conta com um mercado de trabalho tão restrito? A indagação obrigava-me ir além das explicações de natureza subjetiva, enviesadas por uma visão romântica de mundo e que apelam ao amor à profissão, à vocação de uma pessoa e coisas assim, para buscar um nexo tão definitivo entre a coisa e o caso quanto aquele que me levava todas manhãs ao escritório.
Sim, porque todas as profissões, desde as de sentido mais prático como a de bombeiro ou de engenheiro até as que têm por objeto algo mais elusivo prestam-se a uma finalidade prática, não havendo motivo para diferenciá-las na contribuição que dão à estruturação da ordem social.
Disse-lhe que o filósofo é o sujeito que articula o conjunto de valores com que se tece o olhar lançado sobre os diferentes aspectos da vida em comunidade, em linha com o particular modo como nela se apropriam os recursos e se distribui a riqueza gerada. É o ideólogo que busca continuamente rearranjar as experiências coletivas de modo a produzir percepções que se ajustem às relações de poder entre as diferentes classes e grupos sociais, no sentido de mantê-las e atualizá-las.
O filósofo, ao lado do economista e do advogado, é agente da ordem como também o são o policial e o fiscal de tributos, pronto a justificar determinado modo de interpretação do mundo como o devido a um dado estado de coisas que entendemos por realidade. Pode ser também o agente de rupturas, mas apenas quando as condições materiais sobre as quais realiza seu pensar encontram-se suficientmente maduras a fim de que um novo paradigma de idéias sobreponha-se àquele que até então vigorava.
Foi além meu filho em seus questionamentos e inquiriu-me então sobre onde laborariam os filósofos esse seu fazer abstrato, avesso a oficinas ou vitrinas. Nos Institutos, nos centros de estudos de partidos políticos, nas universidades disse-lhe eu. Não assumem de modo aberto seu papel de forjadores de mentalidades senão que se escondem detrás de personalidades ou entidades, que parecem pairar além dos interesses privados e em sintonia com o bem-estar coletivo.
Veja o caso entre nós da Instituição de nome singelo “Casa das Garças”. A princípio um lugar de encontro de intelectuais preocupados com o futuro do país. Na verdade um fórum permanente de ex-membros do governo Fernando Henrique Cardoso ligados pelas convicções liberais de que quase tudo que seja regramento aos mercados afigura-se atentado contra a liberdade individual.
Mas se lhes perguntar quem é o mercado, dirão das virtudes de uma espécie de mecanismo fantasma de alocação de recursos que funde numa só perspectiva os interesses do operário da construção civil e os dos banqueiros. Ao mesmo tempo em que omitem o fato de quem lhes paga as contas dos animados colóquios são as mesmas instituições financeiras a quem fornecem o substrato ideológico de uma sociedade governada pelos interesses do capital financeiro.
De modo parecido, mas em nível mais midiático, quando um filósofo como o vestal uspiano Renato Janine Ribeiro sai por aí defendendo em colunas de jornais que seja permitido o lançamento de candidaturas políticas independentes de partidos e pedindo a adoção do sistema de patronagem que vige na França, não está apenas tendo uma idéia legal, mas propondo a adoção de uma medida de fortalecimento das oligarquias econômicas que haverão de viabilizar o dito candidato avulso. E contribuindo, ao mesmo tempo, para debilitar a possibilidade de adoção de métodos comprovadamente efetivos de vocalização de interesses de minorias sub-representadas, como o voto distrital, as quotas e o sistema de listas.
Para finalizar minhas elucidações de pai, tentei lembrar inutilmente de alguém que alertou da nossa sina de estarmos fadados a ser sempre guiados por algum filósofo morto. Quanto aos vivos, acrescentei eu a meu filho, em geral pouco importam. Estão apenas em busca de empregos, como Janine, você e o bombeiro. A droga é que para cada Epicuro morto sobrevêm um milhão de Epicaretas Vivaldinos da Silva.
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