Achamos que certos acontecimentos estão sempre reservados aos outros e que jamais acontecerão conosco. O leque de situações que fornecem essas impressões vai de acidentes pessoais a catástrofes coletivas, os dois grupos principais de eventos que de um modo ou outro acabam se colocando em nossos radares e ainda que algo relevados levam-nos adoção de medidas preventivas, como a compra de uma apólice de seguro ou a escolha de uma residência em lugar mais seguro.
Mas os tempos de rápidas transformações econômicas na sociedade de hoje em dia produziram uma terceira categoria de eventos que não podem ser considerados nem acidentes pessoais nem catástrofes coletivas. Uma espécie de evento híbrido a que é possível chamar de catástrofes pessoais. Consistem na ruptura da normalidade da vida financeira e social de um indivíduo que, pela perda de aptidão ao trabalho – não exclusivamente física – se vê levado ao estado de desemprego crônico e depois ao isolamento de seus iguais.
Atuam para a inclusão nesse quadro, além das causas mais freqüentes de dependência a drogas (até as legais) e de transtornos mentais, duas motivações de natureza concorrente: a desqualificação profissional, num mundo em rápidas transformações onde profissões desaparecem da noite para o dia, e a desagregação das redes de apoio social da pessoa. Sua família, seu circulo de amigos e suas relações de vizinhança.
O assunto importa pelo risco cada vez mais presente de que, nas circunstâncias de crise permanente do capitalismo contemporâneo, o “próximo” a merecer a solidariedade alheia possa ser você.
A hipótese confirmou-se tragicamente verdadeira nos Estados Unidos desde a segunda metade desta década quando a casa e o trabalho foram de 2 milhões de pessoas foram de maneira súbita subtraídos, com o que se lhes deceparam também os vínculos com a comunidade e a autoestima. Naquela que é uma sociedade que tem como marcador de prestígio social a ascensão social para a classificação dual do indivíduo ou como vitorioso (win) ou derrotado (looser). Compartilhamos em maior ou menor medida do mesmo critério de avaliação quando categorizamos os membros de nossa comunidade entre aqueles que obtiveram sucesso e os que fracassaram.
O fenômeno da segregação econômica massiva atualmente é bem expresso pelo aumento das populações em condições de moradia da rua, entendida a rua como todo o espaço de abrigo humano impróprio à sobrevivência do indivíduo. Sua ocorrência se verifica em todas as metrópoles e, por paradoxal, de modo até autonomizado nas economias que tardam em compatibilzar o passo de seu desenvolvimento com a qualificação da mão de obra, como a nossa.
Mas quem seria esse outro, que integra essa sub-população apartada de suas raízes, cada vez mais assemelhado a nós mesmos dada a percepção de riscos à dignidade pessoal que com ele se compartilha? Esse reconhecimento vem sendo realizado pelos censos de moradores de rua que em São Paulo e nas grandes cidades de países desenvolvidas do mundo são conduzidos bianualmente.
Os censos traçam perfis bastante parecidos entre si daqueles que se encontram ao desabrigo, podendo ser utilizado o mais recente deles, o efetuado na cidade de Nova Iorque em janeiro deste ano, como referência para a definição de um painel sobre quem é morador de rua. É desse painel que surge a conclusão de que suas características aproximam-se das de qualquer outro indivíduo vivendo em condições normais numa mesma cidade.
Em primeiro lugar o morador de rua não vem de fora, não é mais migrante, mas nascido na cidade cujas ruas vêm habitando. Não tem cor predominante, mas sua tez reflete a prevalência de raças na população em geral. Também na têm a idade de minorias inaptas ao trabalho, como velhos e crianças. A idade média da população de rua situa-se dentre do leque da população ativa, de 18 e 60 anos.
Cerca de metade dessa população aufere algum tipo de rendimento proveniente do trabalho (45%) e a terça parte disso (16%) possui emprego formal. A outra metade é composta por gente com inaptidão física e mental em virtude do padecimento de distúrbios psiquiátricos e do uso de drogas. São também em sua maioria homens, com nível de escolaridade que chega até o universitário.
Alvos mais freqüentes de violência, os que chegam à rua em caráter recente preferem, assim como os doentes mentais, concentrar-se nos centros das cidades vindo a incorporar com o tempo os agrupamentos que fazem uso de drogas e bebidas, como em São Paulo a chamada cracolância. O motivo da ida às ruas são dissensões familiares motivadas por problemas financeiros reiterados. Entre os que têm até 25 anos o principal motivo é litígio com os pais.
O mais importante desejo do morador de rua, na sua maioria (75%), é poder desfrutar de uma casa e de um emprego, não sendo, pois, verdade que sua condição é determinada pela vontade de uma vida nômade. No entanto, mesmo ansiando por um lar, rejeitam os abrigos públicos por considerá-los lugares sem identidade própria e que marcariam, até mais que as ruas, sua condição de indivíduos em estado de miserabilidade. É desse modo que apenas 15% da população de rua faz uso de albergues públicos, o que mantêm ociosos 50% dos leitos disponibilizados.
No Brasil, a contagem de moradores de rua e a identificação de suas necessidades e percepções por parte das prefeituras de cidades não é obrigação fixada em lei federal. Tampouco o faz o IBGE, uma vez que o censo regularmente realizado pela Instituição faz visitação apenas aos domicílios.
A institucionalização dessas contagens traduz iniciativa legislativa de urgência a fim de que se desenvolvam políticas públicas no sentido de proporcionar uma rota de fuga aos contingentes populacionais que continuamente são lançadas às ruas por força das iniqüidades intrínsecas a um sistema econômico fundado na competição. E a ninguém, nas condições de dissolução do mercado de trabalho e da família tradicional, é dado asseverar que se manterá continuamente no pelotão dos bem sucedidos.
Fonte de dados: Organização CommonGrund, que realizou o censo de moradores de rua na cidade de Nova Iorque.
Nenhum comentário:
Postar um comentário