Parecia até que não era com a gente essa coisa da instabilidade crônica e do persistente risco do empobrecimento. Afinal nos últimos 150 anos tivemos uma mobilidade social esplêndida e a maioria de nós vive melhor hoje do que viviam nossos antepassados há não mais que um século atrás.
Passamos acreditar, e nos fizeram acreditar, que se trabalhássemos duro e pagássemos as contas em dia, vivendo com moderação e guardando algo para o futuro teríamos pela frente um caminho virtuoso em que a situação presente seria nada mais que um degrau adiante do passado recente.
Porque os mercados selecionariam os mais esforçados e meritosos, recompensando-os com o perfeito controle sobre suas próprias vidas e o seu trabalho. Essas convicções germinaram primeiramente na sociedade vitoriana inglesa do século retrasado e chegaram ao seu apogeu na década dos 80 passada, quando a idéia daquele que “se fez por si mesmo” , sem o patrocínio de heranças, estaria ao alcance de quem o pretendesse.
Afinal a queda dos muros ideológicos que separavam os que pensavam qual ordem social seria mais adequada à felicidade e ao bem-estar das populações havia deixado um único modelo estabelecido, tratando-se apenas de decidir com relação a este o grau de ajuste necessário entre espaços de ação ao livre mercado e de proteção aos menos aptos na disputa concorrencial, alguma forma de seguridade social.
E isso quando ia longe os alertas do primeiro e verdadeiro sapo barbudo, Karl Marx, que alertava a uma classe média recém chegada a uma era de afluência sobre a fluidez de tudo que a cercava, no manifesto que renderia ao mundo desde sua divulgação continuada pancadaria entre classes e grupos sociais, o Manifesto Comunista.
Errara Marx a natureza da ameaça que em 1848 lhe pareceu rondar o mundo. De lá para cá foram mais de 150 anos de prosperidade jamais imaginada por homens e mulheres ainda há 3 ou 4 gerações atrás: casa para a maioria, conveniências para todos e comida farta e barata em cada esquina, ainda que na forma de simples hot-dog.
Apenas que a idéia de segurança e prosperidade contínua a que fomos acostumados a esperar para nossas vidas já não é mais possível. O dinamismo cada vez mais veloz das forças produtivas engendradas pelo sucesso do capitalismo solapou as bases da estabilidade, que lhe garantiam o substrato ideológico responsável pela adesão dos amplos contingentes de classe média ao longo história.
A mudança tornou-se regra e o controle sobre o futuro escapou ao controle do indivíduo para nunca mais tornar. Os jovens que eram educados a prover para o futuro e a trabalhar duro, iniciam a vida endividados pela formação que tiveram de buscar para ingressar no mundo do trabalho. A mudança continuada de ocupações faz com que a transição de uma a outra delas seja coberta com os poucos fundos que sabiamente conseguem suprimir aos bares e à vida noturna.
Não há mais futuro, não há mais segurança. A casa, única reserva de riqueza que poderia reivindicar um cidadão de classe média, desvaloriza-se a cada década diante da escassez do crédito que impulsionaria o mercado para frente. O carro, a jóia, o dólar, nada mais funciona como reserva de valor, da mesma forma como deixou de funcionar uma vez o controle sobre linhas telefônicas como guarda de valores. Vai se vivendo cada dia, sem projeto de futuro e sem quaisquer certezas do que poderia ser feito para escapar à crescente precarização da vida cotidiana.
O “homem do saco”, morador de rua com que aterrorizavam os adultos nossa infância distraída é, em estado limite, o precarizado pela instabilidade com que nos acena o futuro. O despossuído, o desenraizado, esse parece ser o paradigma de indivíduo do futuro. Um paradigma a temer, não um paradigma a ansiar.
Eis que o capitalismo engendrou sua própria doença e a fluidez de uma sociedade em permanente mobilidade interna, que Marx disse arruinaria aqueles a quem chamava de burgueses, a classe média de agora, virou fato consumado diante dos olhos.
Esperamos pela crise do dia seguinte, envolvidos em disputa impossível de ser vencida contra um tempo que nos lança continuamente à obsolescência, matando-nos ou de stress ou de depressão. Ao mesmo tempo em que nossos filhos, a reprodução da força de trabalho com que contava o sistema para perpetuar-se, se detêm em qualquer “cracolândia” dissimulada por aí.
Talvez a explicação simples mas chocante seja a de que o capitalismo hoje precise menos deles, como precisa menos de nós. Algo precisa ser feito com urgência.
cesar, muito bom esse artigo. Fico feliz e com espenças de um mundo melhor, tendo pessoas comprometidas como você.
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