Quando o diabo decide carregar um aproveitador, Deus chama um homem justo para que o mundo mantenha-se como sempre foi. Isso é o que se pode dizer da morte de Millôr Fernandes poucos dias após a de Chico Anísio.
Com seu humor irreverente, sempre um tom acima do que seriam as conveniências do establishment, Millôr pontuou durante o tempo que durou o regime militar no Brasil e ainda depois dele – ao lado de chargistas, teatrólogos e jornalistas de oposição – o que havia de risível e grotesco na farsa jurídica e parlamentar que mantinha o poder em mãos de militares.
A ditadura, como se sabe hoje, poderia ter acabado antes não fosse o pacto que uniu setores diversos da sociedade bem estabelecida, meios de comunicação e políticos para impedir a perda atabalhoada de controle sobre um Estado moldado aos interesses de manda-chuvas.
A fórmula da transição “lenta gradual e segura”, urdida para impedir que líderes de movimentos populares – como Lula da Silva – chegassem ao poder não foi ideia solitária do estrategista da ditadura Golbery do Couto e Silva, mas acordo explícito celebrado entre militares, parlamentares da oposição consentida e o comissário das telecomunicações no Brasil e dono das Organizações Globo, Roberto Marinho.
Foi esse o divisor de águas – a admissão do gradualismo na transferência de poder aos civis – que distinguiu, nos vinte anos que vão das greves do ABC ao impeachment de Collor, o humor feito para servir de instrumento ao avanço das lutas democráticas e o humor concebido como recurso de fragilização dos movimentos sociais e de ridicularização de manifestações culturais de oposição ao regime.
Entre Millôr Fernandes e Chico Anísio havia uma diferença de vulto. Um trabalhava com refinamento e arte para a causa da emancipação democrática; o outro, sob o soldo da empresa de comunicação dos militares, empenhava-se em transformar os únicos agentes de mudança real das estruturas de poder na sociedade, o povo, em amontoado de figuras cômicas incapazes de tomar o destino nas próprias mãos, exceto se dirigidos pelos prepostos do status quo.
Guiado pelo credo da coerência, Millôr atuou para que se estabelecessem meios alternativos aos canais oficiais de comunicação, na mídia impressa e na televisiva, sem se importar se emergiria da empreitada mais rico ou mais pobre. Sua produção intelectual contribuiu verdadeiramente para o enriquecimento da cultura nacional e para a iluminação de nossas deficiências coletivas, visando o grande passo adiante que as décadas seguintes reservaria à democracia social no Brasil.
Chico Anísio, ao invés, não teve compromissos senão com seus contratantes, indo tão fundo no papel de bobo da corte do oficialismo a ponto de haver se tornado – com o tipo de humor desmoralizante praticado – inconveniente até ao esquema de poder que o consagrou.
Por essa razão, bem se manifestou a presidente da República quando disse que a morte de Millôr significava uma perda de referência para a cultura nacional e a de Chico Anísio o fim de um talentoso ator.
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