quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O individualismo que encarcera



Houve um tempo em que a filosofia era um guia para vida e forma de relacionar-se com tudo que lhe é próprio: as perdas, as penas e as alegrias. Antes ainda que a religião pudesse separar as pessoas em igrejas cambiando obediência e fé pela atenuação do medo. E a diversão a qualquer preço se oferecesse como possibilidade desviante das angústias humanas.
Havia então filósofos em cada esquina das primeiras cidades e pelos quintais as pessoas lembravam-se mutuamente da matéria escorregadia e mutante de que é feita a vida. Se o infortúnio sucedia a alguém nos vilarejos da China antiga reputava-se à dupla natureza dos acontecimentos, positiva e negativa (ying e yang) não apenas os efeitos funestos que vitimava, mas também a abertura para novas possibilidades portadoras da fortuna e felicidade pessoal.
Como sucedeu ao aldeão que despertado à noite por um cavalo negro que adentrou suas possessões viu na manhã seguinte acorrerem ao seu encontro os vizinhos, que se congratulavam com sua boa sorte. Incrédulo quanto qualquer sentido exclusivo para o evento, preferiu esperar pelos dias que se seguiriam. E eis que seu filho, jovem intrépido, ao cavalgar o alazão caiu de seu dorso, vindo a perder o movimento de uma das pernas. Mais uma vez os vizinhos vieram ao encontro do aldeão, desta vez para manifestar solidariedade com o infortúnio. Incrédulo da natureza definitiva dos fatos, o pai pesaroso também desta vez resolveu esperar. E não tardou a chegar a notícia de que um conflito eclodira e que todos os jovens em idade de combate estavam sendo recrutados para o confronto. Terminada a guerra nenhum jovem jamais retornou à casa paterna.  Sobreviveu à tragédia apenas o filho do aldeão que, inválido, fora recusado para frente de luta.
De modo não muito diferente pensavam os estóicos, que não acreditavam na possibilidade de se resistir aos fatos desde que a comandá-los  estavam as forças do universo, dos quais são meras manifestações. Contra a força bruta dos acontecimentos possuíam os homens à disposição força muito superior, porém de natureza sutil, o logos.
Essa força essencialmente humana residia na capacidade de esperar, ordenar as iniciativas e operar por pequenos movimentos valendo-se da razão e da inteligência, para que a força bruta perdesse potência, se volatizasse e pudesse desse modo retornar à imaterialidade dos princípios básicos dos quais se originou; o fogo, a água, a terra e o ar.
A vitória sobre as circunstâncias nômades e inesperadas da vida só seria possível porque apenas a ele homem é dado combinar, em seu favor, cada um daqueles princípios, temperando o próprio espírito de coragem e bravura por meio da pneuma, a energia que anima a vida.
Mas essa contra-força ordenadora ganha amplitude exclusivamente no espaço da vida em comunidade, na vida da polis, no intercâmbio com outro. Daí não ser algo do âmbito do religioso, mas sim do social. Puro exercício de liberdade, do mesmo modo como pensou o homem Jean Paul Sartre, que, apartado das coisas inanimadas, “o ser em si”, faz-se humano ou “ser para si” quando colocado em relação com o mundo. Quando ama, doa-se e luta pelo direito de outrem de comer o pão e também de ser feliz.
Para Lao Tzu, Zeno e Sartre estamos todos lançados no mundo, sós e apartados. Fazemo-nos humanos a nós próprios no momento em que no exercício da liberdade buscamos romper o isolamento que a vida nos impõe, promovendo sucessivamente as pessoas, o grupo e o país. No mesmo movimento em que, recusando os dogmas da religião e da individualidade, abrimos as grades da prisão invisível que encarcera e mata a todos, individual e compassadamente.

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