Sob o véu da militância política dos meios de comunicação
uma afronta ao regime democrático pareceu, por dias seguidos, ter mudado de
endereço. Tomou-se por petardo letal contra o regime de equilíbrio de poderes a
emenda à constituição que estabelecia critérios para o Judiciário declarar a
inconstitucionalidade de alterações na carta maior do País ao mesmo tempo em que
o Supremo Federal adotava, pelas mãos do ministro Gilmar Mendes, iniciativa sem
precedentes na história da República de interditar o debate sobre tema
legislativo.
Inverteram-se deliberadamente os papéis de agressor e agredido
entre os poderes da república colocados em confronto. No caso em que a iniciativa
partiu do Congresso, discutia-se um primeiro passo no debate sobre tema que
está longe de ser consensual entre constitucionalistas do mundo inteiro sobre
até que ponto dispõe o Supremo de autoridade para avaliar a constitucionalidade
de matéria legislativa diferente de leis ordinárias, como as emendas constitucionais.
No caso em que foi protagonista um ministro do Supremo, o que se fez foi coibir
de imediato a atividade mais fundamental do legislativo, que é a de discutir
leis.
Aos poucos o sentido de cada um dos fatos, aquele que tomou
lugar na casa das leis e o que partiu do gabinete de um único ministro do
Tribunal, foi devidamente interpretado à luz da doutrina do direito e
das suas implicações jurídicas para o processo legislativo e a independência dos poderes.Ficou claro que o ministro exorbitou de seu papel e arrastou o colegiado que integra para uma preocupante afronta à estabilidade do regime democrático.
Dentre essas vozes esclarecedoras sobre qual dos poderes
avilta e qual é aviltado, merece destaque a do professor de
direito constitucional da Universidade de São Paulo Virgílio Afonso da Silva,
publicado no jornal Valor Econômico de 06/05/2013, que reproduzimos a seguir.
A emenda e o Supremo
Por Virgílio Afonso da Silva, Prof. de Direito Constitucional da
USP
(Publicado originalmente no Jornal
Valor Econômico de 06/05/2013)
Na semana passada,
todos os holofotes estavam apontados para a Câmara dos Deputados, que discutia
uma proposta de emenda constitucional (PEC) que, segundo muitos, é
flagrantemente inconstitucional, por ferir a separação de poderes. Contudo, a
decisão mais inquietante, em vários sentidos, inclusive em relação à própria
separação de poderes, estava sendo tomada no prédio ao lado, no Supremo
Tribunal Federal (STF).
No dia seguinte, nas primeiras páginas
dos jornais, o grande vilão, como sempre, foi o poder Legislativo. A PEC
analisada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara é
polêmica, com certeza. Sua constitucionalidade é questionável, não há dúvidas.
Mas, do ponto de vista jurídico, da separação de poderes e do direito
comparado, a decisão do STF, que bloqueou o debate no Senado sobre as novas
regras de acesso dos partidos políticos à TV e ao fundo partidário, é muito
mais chocante.
O ponto mais polêmico da PEC é a
exigência de que uma decisão do STF que declare a inconstitucionalidade de uma
emenda constitucional seja analisada pelo Congresso Nacional, o qual, se a ela
se opuser, deverá enviar o caso a consulta popular.
É quase um consenso entre juristas que
um tribunal constitucional ou uma suprema corte, como é o caso do STF, deve ter
a última palavra na interpretação da constituição e na análise da
compatibilidade das leis ordinárias com a constituição. Mas muito menos
consensual é a extensão desse raciocínio para o caso das emendas
constitucionais. Nos EUA, por exemplo, emendas à constituição não são controladas
pelo Judiciário. A ideia é simples: se a própria constituição é alterada, não
cabe à Suprema Corte analisar se o novo texto é compatível com o texto antigo.
Isso quem decide é povo, por meio de seus representantes. Mesmo no caso do
controle de leis ordinárias, há exemplos que relativizam o "quase
consenso" mencionado acima, como é o caso do Canadá, cujo Parlamento não
apenas pode anular uma decisão contrária da Suprema Corte, como também imunizar
uma lei por determinado período de tempo contra novas decisões do Judiciário.
Não há dúvidas de que o caso brasileiro
é diferente. A constituição brasileira possui normas que não podem ser
alteradas nem mesmo por emendas constitucionais, as chamadas cláusulas pétreas.
Mas não me parece que seja necessário entrar nesse complexo debate de direito
constitucional, já que o intuito não é defender a decisão da CCJ, cuja
conveniência e oportunidade são discutíveis.
Neste momento em que o Legislativo
passa por uma séria crise de legitimidade, não parece ser a hora de tentar
recuperá-la da forma como se tentou. Tampouco quero defender a
constitucionalidade da PEC no seu todo. O que pretendi até aqui foi apenas
apontar que, embora extremamente polêmica, a proposta é menos singular do que
muitos pretenderam fazer crer.
Já a decisão do ministro Gilmar Mendes,
tomada na mesma data e que mereceu muito menos atenção da imprensa, é algo que
parece não ter paralelo na história do STF e na experiência internacional. Ao
bloquear o debate sobre as novas regras partidárias, Gilmar Mendes simplesmente
decidiu que o Senado não poderia deliberar sobre um projeto de lei porque ele,
Gilmar Mendes, não concorda com o teor do projeto. Em termos muito simples, foi
isso o que aconteceu. Embora em sua decisão ele procure mostrar que o STF tem o
dever de zelar pelo "devido processo legislativo", sua decisão não
tem nada a ver com essa questão. Os precedentes do STF e as obras de autores
brasileiros e estrangeiros que o ministro cita não têm relação com o que ele de
fato decidiu. Sua decisão foi, na verdade, sobre a questão de fundo, não sobre
o procedimento. Gilmar Mendes não conseguiu apontar absolutamente nenhum
problema procedimental, nenhum desrespeito ao processo legislativo por parte do
Senado. O máximo que ele conseguiu foi afirmar que o processo teria sido muito
rápido e aparentemente casuístico. Mas, desde que respeitadas as regras do
processo legislativo, o quão rápido um projeto é analisado é uma questão
política, não jurídica. Não cabe ao STF ditar o ritmo do processo legislativo.
Sua decisão apoia-se em uma única e
singela ideia, que pode ser resumida pelo argumento "se o projeto for
aprovado, ele será inconstitucional pelas razões a, b e c". Ora, não
existe no Brasil, e em quase nenhum lugar do mundo, controle prévio de constitucionalidade
feito pelo Judiciário. Mesmo nos lugares onde há esse controle prévio - como na
França - ele jamais ocorre dessa forma. Na França, o Conselho Constitucional
pode analisar a constitucionalidade de uma lei antes de ela entrar em vigor,
mas nunca impedir o próprio debate. Uma decisão nesse sentido, de impedir o
próprio debate, é simplesmente autoritária e sem paralelos na história do STF e
de tribunais semelhantes em países democráticos.
Assim, ao contrário do que se noticiou
na imprensa, a decisão do STF não é uma ingerência "em escala
incomparavelmente menor" do que a decisão da CCJ. É justamente o oposto.
Além das razões que já mencionei antes, a decisão do STF é mais alarmante
também porque produz efeitos concretos e imediatos, ao contrário da decisão da CCJ,
que é apenas um passo inicial de um longo processo de debates que pode,
eventualmente, não terminar em nada. E também porque, se não for revista, abre
caminho para que o STF possa bloquear qualquer debate no Legislativo sempre que
não gostar do que está sendo discutido. E a comprovação de que essa não é uma
mera suposição veio mais rápido do que se imaginava: dois dias depois, em outra
decisão sem precedentes, o ministro Dias Toffoli exigiu da Câmara dos Deputados
explicações acerca do que estava sendo discutido na CCJ, como se a Câmara
devesse alguma satisfação nesse sentido. É no mínimo irônico que, na mesma
semana em que acusa a Câmara de desrespeitar a separação de poderes, o STF
tenha tomado duas decisões que afrontaram esse princípio de forma tão inequívoca.
A declaração de Carlos Velloso, um ex-ministro do STF que prima pela cautela e
cordialidade, não poderia ter sido mais ilustrativa da gravidade da decisão do
ministro Gilmar Mendes: "No meu tempo de Supremo, eu nunca vi nada igual"!
Por essa razão é preciso estabeler mandato para Ministro do Supremo para haver alternancia de posição ideologica.
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