A recente entrevista da ex-senadora Marina Silva ao programa
de televisão “Roda Viva” foi uma demonstração divertida de como o pensamento
religioso é capaz de ocultar-se a si mesmo e transformar seu portador em
campeão do convencimento e do bom senso. Claro que do outro lado, na bancada
dos inquiridores, estavam homens e mulheres acostumados a certa espécie de perguntas
ordinárias que não ultrapassam a superfície daquilo que é notícia.
E foi notícia a inciativa da entrevistada de criação de
partido político que se nega como tal e pretende ser veículo de uma vontade
coletiva e suprapartidária a que chama de “rede”. Como assim, um partido que
não representa interesses e não disputas posições colocadas na sociedade, que
apenas explora a virtude de consensos? Foi esse o tom dos questionamentos feitos
a Marina, como se ela mentisse ou incorresse num devaneio do qual não seria
capaz de prestar contas se um dia enfim chegasse ao poder.
O que deveria ser colocado em evidência nos movimentos de
Marina eram as premissas que os embasavam e a visão de processo político que
encerravam. Quando no século 17 Francis Bacon disse que “de uma virgem
consagrada a Deus não poderia advir o quer que fosse” pensava estar colocando
ponto final numa modalidade de pensamento que nascido da retórica de
Aristóteles entendia como “antirracional e responsável por um idealismo fora de
moda”.
Essa ideia seminal a que cabia por fim era a teleologia. Na ciência
antiga, também chamada de filosofia natural, a teleologia sustentava que um
sentido de finalidade dominava a trajetória das coisas no mundo, em particular das
coisas vivas. O exemplo que Aristóteles
dava era o da espiga nova, que florescia num broto de sementes exatamente porque
era seu propósito transformar-se num pé de milho.
Em alguns momentos a teleologia parecia assumir a forma de
uma mente criadora em ação agindo à partir do telos (a causa final) para pôr
ordem no mundo, a chamada causação mecanicista. Para que a ciência pudesse vir
à luz como método foi que Francis Bacon denunciou a teleologia como uma forma
improvável de deus ex-machina do qual deveria livrar-se a razão humana.
A tarefa que se impôs Francis Bacon revelou-se bem mais difícil
do que parecia e bolhas de pensamento teleológico continuaram a vir a tona
durante a longa jornada do pensamento lógico, em particular nas questões
relacionada à vida. Immanuel Kant ainda no século 19 julgou proveitoso pensar
um ser vivo do ponto de vista teleológico tendo em vista não haver certeza
deste tipo de abordagem ser correto ou não. Darwin mesmo passou a ser lido por
numerosos admiradores como um interprete de uma leitura finalística da vida,
ideia de todo rejeitada pelo cientista.
A concepção de que os entes vivos tinham um propósito
atravessou as ciências biológicas e chegou à cibernética e às ciências sociais.
Norbert Wiener em seu Tratado de cibernética de 1948 (Cibernétiica: controle e
comunicação no animal e na máquina) argumentava que dado serem os sistemas artificiais
estruturados para a utilização de “feed-backs” (quando “outputs” são utilizados
novamente como “inputs”), estaríamos prestes a conceber uma forma de máquina
teleológica.
Mais recentemente Francis Fukuyama, muito referenciado por liberais do naipe de Fernando Henrique Cardoso e Tony Blair, sustentou em seu “O fim da história e o último homem”, de 1992, o argumento teleológico de que as democracias liberais seriam a culminância de um processo de seleção natural nas ciências naturais, predestinadas a se sobreporem a quaisquer outras formas de organização das sociedades.
Mais recentemente Francis Fukuyama, muito referenciado por liberais do naipe de Fernando Henrique Cardoso e Tony Blair, sustentou em seu “O fim da história e o último homem”, de 1992, o argumento teleológico de que as democracias liberais seriam a culminância de um processo de seleção natural nas ciências naturais, predestinadas a se sobreporem a quaisquer outras formas de organização das sociedades.
Da mesma noção está revestida a ideia hegeliana de “política
progressiva” que juntaria paulatinamente os mais conscientes em torno de uma rede
de consensos, apta a promover crescente melhoria da qualidade da política e
das instituições. Não muito diferente do que pensam os “teóricos da
singularidade”, que acreditam que a humanidade está predestinada a fundir-se
espiritualmente com suas próprias máquinas.
E aqui encontramos Marina e os seus. Trazem uma proposta de
articulação política muito parecida com teses propugnadas pelo celebrado escritor
“científico” Thomas Nagel cuja obra de 2012 “Mente e Cosmos” foi classificado
pelo jornal inglês The Guardian, equivocadamente, como “o mais surpreendente livro de ciência de
2012”.
Fugindo a pecha de cracionista, Nagel sugere que o pensamento teleológico não pressupõe um
criador; que se refere mais a uma lei tendencial do universo em que as interações
dadas ao acaso tendem a níveis superiores de consciência. Para ele, as coisas
acontecem porque há um caminho oculto que as conduzem a determinados
desdobramentos, inclusive ao desvelamento de verdades morais. De outra maneira,
vivemos num mundo cujo propósito fundamental, ou telos, é a produção de
consciência e de valores morais afirmativos.
Os argumentos soam misticamente confortáveis como os de
Marina e sua gente: aqueles que tocados pelo senso de justiça e correção
divinas vierem a agrupar-se em sua Rede para uma ação política progressivamente
mais efetiva, poderão alçar voos espirituais
cada vez mais altos com as extensões biomecânicas que lhes coloca a disposiçao a internet.
Por essa razão, diferentes igrejas pentecostais envolvidas com
o projeto da ex-senadora saúdam-na como missionária dos novos tempos. Nunca
qualquer outra esteve tão perto de trazer tantas almas ao dízimo e oferecer um
projeto robusto de poder aos evangélicos. Por meio da "rede", que Cristo lançava ao mar da galiléia e que deu ao evangelismo a figura do peixinho como icone religioso.
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