Às vezes uma réstia de luz penetra nas cavernas
escuras da mídia para iluminar algumas verdades que são aparentes apenas àqueles que se
dedicam à tarefa cotidiana de coligir e confrontar informações na imprensa, passando ao largo das análises carrancudas dos articulistas oficiais da
grande imprensa e de seus avatares no telejornalismo.
Desse raro atributo de esclarecimento está revestido o
artigo assinado pelo cientista político Claudio Gonçalves Couto (transcrito
abaixo) da FGV, na edição do jornal Valor Econômico que circulou no feriado de
Corpus Christi. O texto fala de uma questão de mérito, o que diferenciaria a
influência política do puro caciquismo na prática de lideranças políticas?
Pra desvendá-la confronta dois episódios recentes da cena
política nacional: a iniciativa do ex-presidente Lula da Silva de apoiar para
candidato a prefeito da maior cidade do País o nome de alguém jejuno em
disputas eleitorais, seu ex-ministro Fernando Haddad, em detrimento do nome
consagrado da senadora Marta Suplicy; e a decisão do ex-governador José
Serra de apresentar seu nome à mesma
disputa eleitoral.
Para surpresa
daqueles que se acostumaram às versões de matiz conservador predominantes na
imprensa e na mídia, as quais associam os atos de Lula ao personalismo
autoritário de um líder sindical e os gestos de Serra à capacidade estratégica
de um exímio acadêmico, o autor do artigo mostra a diferença entre os dois
políticos atribuindo ao ex-presidente o perfil de líder renovador e ao
ex-governador o de cacique que violenta a vontade de seu partido e sufoca-lhe a
capacidade de renovação.
Os argumentos alinhavados pelo professor valem por certo bem
mais que as precedentes ponderações, que bem poderiam ser omitidas.
Sobre caciques e partidos
Por Cláudio Gonçalves Couto
A birra de Marta Suplicy, ausentando-se do ato de
lançamento da candidatura de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo, enseja
uma boa oportunidade para discutir o papel das lideranças individuais nos
partidos políticos. Ela serve para mostrar que o caciquismo é um fenômeno mais
complexo do que sugerem análises apressadas sobre a influência de certas
lideranças na definição dos rumos das organizações partidárias. Quanto a isto,
um aspecto ganha relevo: enquanto alguns líderes criam sucessores, atuando na
produção ou reforço de novas lideranças (crucial para a sobrevivência
organizacional), outros embotam essa criação, contribuindo para a esclerose
organizacional.
O problema é distinguir entre caciquismo - um tipo
de liderança que subjuga a organização à vontade pessoal inquestionável do
líder - e influência. Uma liderança influente no partido logra convencer os
correligionários, sem contudo impor-lhes decisões inquestionáveis. Assim, se a
persuasão é requisito para a obtenção de anuência, não há caciquismo. Trata-se
de diferença de grau, que ultrapassados certos limiares se converte em
distinção de natureza.
Há situações nas quais se migra, ao longo do tempo,
de um estado para outro. Assim, caciques podem converter-se apenas em
lideranças influentes, seja por que se debilitam ou ajustam a conduta, seja
porque um reforço organizacional do partido lhes reduz o espaço para o
arbítrio. Inversamente, líderes influentes podem, em certas conjunturas,
tornar-se caciques; algo mais provável em organizações partidárias frouxas ou
enfraquecidas - o que não é a mesma coisa.
Caciques
são os que se colocam acima do partido
Para existir, o cacique necessita do apoio de um
subconjunto organizacional dentro do partido: sua entourage, uma facção
majoritária ou posições-chave na burocracia. Assim, enquanto o partido como um
todo é fraco organizacionalmente, esse subgrupo é relativamente forte, impondo
a vontade de seu líder. Contudo, há uma condição principal, decisiva distinguir
o caciquismo da influência: o cacique subordina os interesses da organização
aos seus próprios; é o projeto pessoal do cacique que sempre prevalece sobre o
do partido - e mesmo sobre o de sua claque.
Há quem veja no patrocínio de Lula à candidatura de
Fernando Haddad evidência de caciquismo, demonstrando que o PT nada mais seria
do que um partido sem vontade própria, a reboque do grande líder. Será mesmo?
Isto não se coaduna com características notórias do partido: organização forte,
disputa intensa entre facções, espaço para contestação seguido de alinhamento a
decisões tomadas pelo conjunto. Na realidade, Lula é muitíssimo influente, mas
não um cacique no sentido próprio do termo. E isto não só por méritos próprios
dele, mas pelas características do partido que construiu - que restringe o
caciquismo.
No caso paulistano, antes mesmo de Marta desistir
da candidatura, já enfrentava - além de Fernando Haddad - a oposição interna de
antigos aliados, agora pré-candidatos, os deputados Jilmar Tatto e Carlos
Zarattini. Candidata duas vezes derrotada à prefeitura, a senadora já não
desfrutava da condição de escolha óbvia da agremiação - como foi em 2008. A
imposição de seu nome - a despeito de outras postulações, de um clamor interno
por renovação e da grande rejeição aferida pelas pesquisas ¬- é que seria
caciquismo. Em tal contexto, o apoio de Lula à renovação operou mais como
contrapeso à tentativa de caciquismo em nível local do que se mostrou ele
próprio uma imposição inconteste.
Compare-se com a autoimposição de José Serra no
PSDB, contra Aécio Neves. Verificou-se no ninho tucano uma estratégia de
sufocamento da disputa interna pela interminável postergação do embate, até que
o ex-governador mineiro jogou a toalha, considerando que não teria tempo hábil
para se viabilizar. A solução pelo alto, dessa ardilosa vitória pelo cansaço,
repetiu-se agora na escolha da candidatura tucana à prefeitura paulistana. Após
meses alegando que não se candidataria, o que ensejou uma animada disputa entre
quatro pré-candidatos (sugerindo renovação partidária) o ex-governador mudou de
ideia, inscreveu-se na prévia após o prazo regulamentar, provocou a desistência
de dois postulantes e prevaleceu. Serra obteve na prévia apenas pouco mais de
50% dos votos, num embate contra postulantes muito menos expressivos - tanto no
que concerne à envergadura política quanto à história. Isto mostra o tamanho do
desagrado que sua soberba causou na base tucana.
Fosse o PSDB dotado de maior densidade organizacional,
os dois episódios da imposição serrista deflagrariam uma crise interna - como a
que deve se produzir no PT de Recife neste ano. O caráter elitizado da
agremiação e a baixa intensidade da vida partidária (sobretudo se comparada à
do PT) permitem que as manobras dos caciques e seus embates permaneçam
basicamente como um problema deles mesmos. A renovação, neste caso, ocorre
apenas nas franjas da disputa política (como nas eleições de deputado estadual
e vereador), pelo ocaso das lideranças ou por algum acidente; raramente por uma
estratégia bem definida. Em São Paulo, a oportunidade da renovação foi perdida;
o risco da esclerose cresceu.
É nisto que as atuações de Lula e Serra se
distinguem como influência, no primeiro caso, e caciquismo, no segundo.
Enquanto o ex-presidente interveio no processo de modo a promover uma renovação
de lideranças e atuando segundo a lógica da organização partidária, o
ex-governador apenas fez prevalecer seu projeto pessoal de poder, às expensas
do partido, que tornou seu refém. Isto permanece, a despeito de quem venha
ganhar ou perder as eleições de outubro.
Algo que confunde a percepção de papéis tão
distintos são os estilos muito diversos de um e de outro. Enquanto Lula é um
líder carismático e de estilo esfuziante, Serra é um líder gerencial e de
estilo soturno. Intuitivamente, o senso comum identifica o primeiro com o
improviso e o personalismo, e o segundo com a racionalidade e a
institucionalidade. Uma análise mais cuidadosa revela exatamente o oposto.